segunda-feira, 29 de março de 2010

As polémicas sobre a inteligência tiveram graves consequenciais sociais

Como é que apenas com um único número se conseguiria medir um objecto com múltiplas características? Infelizmente esta ideia foi divulgada ao público por determinados autores com acesso a jornais de grande tiragem e, curiosamente, foi aceite.
Na realidade, o que interessa não é o número em si, mas o que ele representa.
Não acredito que haja algum psicólogo que ouse afirmar que o QI mede a inteligência. Se os esteticistas tivessem a ideia de calcular um Quociente de Beleza, o QB. Fazendo cálculos científicos em função da largura das ancas, do comprimento do nariz, do aveludado da pele e de outras tantas medidas, desatávamos a rir às gargalhadas. Ninguém acreditaria que a Maria era mais bonita do que a Helena porque o seu QB era 5 pontos mais elevado. A beleza é uma qualidade demasiado subtil para se exprimir por um número. Porque é que não nos dão ainda mais vontade de rir aqueles que representam o I de QI como inicial de inteligência?

Adaptado de A. Jacquard, O Meu Primeiro Livro de Genética, 1986

O primeiro teste de inteligência foi construído por Binet e Simon, em França, em 1905. O governo francês tinha-lhes encomendado a tarefa de identificar as crianças com insucesso escolar, no sentido de serem criadas escolas especiais para elas. Partiram do princípio de que a inteligência nas crianças ê um processo de desenvolvimento e, por isso, em diferentes idades elas devem ter diferentes capacidades. Por exemplo, espera-se que uma criança de cinco anos seja capaz de dizer a idade, ou de distinguir a manhã da tarde, ou que uma de onze anos consiga dizer mais de sessenta palavras em três minutos ou de identificar frases absurdas. Então definiram que tarefas as crianças deveriam ser capazes de executar em cada idade e construíram o teste a partir delas.
O passo seguinte foi encontrar uma expressão numérica que indicasse como é que a criança se posicionava face aos seus pares. Surge o célebre Quociente Intelectual, QI, que resultava da comparação da idade mental da criança, avaliada pelo teste, com a sua idade real, de acordo com uma fórmula.

Binet e Simon consideravam o seu teste, como um mero indicador sobre o desenvolvimento das crianças. Mas rapidamente este número se tornou como que «mágico», definidor da «quantidade» de inteligência, e imutável, ou seja, um rótulo fatalista. Eles próprios diziam: «Devemos protestar e reagir contra este brutal pessimismo».

A controvérsia sobre as diferenças de inteligência não data de hoje. Desde sempre que sábios, filósofos e outros discutiram o assunto, recusando ou, afirmando a existência de diferenças naturais de inteligência entre os indivíduos ou as classes sociais. As teorias ambientalistas, para as quais as diferenças de inteligência são atribuídas essencialmente a diferenças de meio, e as teorias hereditaristas, para as quais as capacidades intelectuais são determinadas geneticamente, ajudaram a extremar as posições.

Só no fim do século XIX é que esta polémica tomou a forma que apresenta ainda hoje, quando Francis Galton, primo de Darwin, faz pela primeira vez a oposição entre os efeitos da hereditariedade e do meio sobre a inteligência. Para conseguir provas experimentais que sustentassem as suas concepções hereditaristas, ou seja, é-se inteligente de pai para filho, ele investigou as genealogias de famílias de músicos célebres como Bach ou Mozart. Mas o que ele realmente estudou foi a questão de saber se, numa mesma família, não haveria um efeito de contexto que explicasse o facto de encontrarmos um número elevado de génios e no mesmo domínio do conhecimento. Persuadido da existência de uma hierarquia inata da inteligência, Galton funda em 1870 a «Eugenia», cujo objectivo era o de melhorar a raça, impedindo a reprodução dos considerados menos capazes.

Estes trabalhos deram ao debate um carácter «venenoso» que não tinha até então. A partir daí, os dois movimentos, hereditarista e ambientalista, desenvolveram-se e confrontaram-se, sobretudo nos países onde os problemas sociais e raciais efervesciam, apoiando-se em investigações às quais faltava, ainda, rigor científico.

No início do século XX, as descobertas de Mendel sobre a hereditariedade, por um lado, e o aparecimento dos testes de inteligência de Binet e Simon, por outro, vão revolucionar as condições de investigação neste domínio. Pensou-se ter no QI, o instrumento capaz de medir a inteligência. E os estudos efectuados quer pelos hereditaristas quer pelos ambientalistas conduziram a aplicações diversas e muitas vezes opostas consoante os autores. Nos EUA, surge o Emigration Act, em 1924, fixando as quotas de emigração com medo que os estrangeiros pudessem «degradar» a raça branca americana.

Este exemplo parece suficiente para mostrar a importância desta controvérsia e as suas consequências. O debate saltou do plano científico para o plano ideológico e político. Cada conclusão tirada de um qualquer estudo, cada posição tomada, reflecte a opinião e a concepção de ser humano do autor. Será necessário citar a teoria hereditarista e a eugenia para justificar as teorias políticas da Alemanha nazi? Ainda nos nossos dias, muita gente defende acerrimamente a teoria hereditarista.

Para um número cada vez maior de investigadores, a inteligência não é a soma da hereditariedade e do meio, e sim o resultado de interacções complexas entre estes dois factores. Desta forma, o debate parece estéril e é preciso usar com muita prudência conceitos difíceis como inteligência ou 01.

A quantificação da inteligência, que traduz em números as competências intelectuais, não passa da expressão do grau de familiaridade com um certo modelo cultural. O QI varia tanto com a hereditariedade como com o meio e varia com o tempo. Os investigadores, à falta de melhor, utilizam ainda este conceito. Mas o importante é estar consciente dos limites desta medida e utilizá-Ia mais como uma fonte de questões do que de respostas.

O rigor científico é igualmente um problema essencial nas investigações em genética humana no domínio da inteligência, onde o controlo dos factores genéticos e do meio apresenta grandes dificuldades. Para tentar desembrulhar esta meada, dois métodos parecem oferecer as melhores garantias de rigor, o estudo dos gémeos verdadeiros e o das crianças adoptadas.

Os gémeos verdadeiros possuem exactamente os mesmos genes já que vêm do mesmo ovo. Estudando o comportamento, medindo o QI de séries de gémeos verdadeiros separados à nascença e criados em meios muito diferentes, podemos atribuir as diferenças observadas ao meio e as semelhanças à hereditariedade. A teoria parece interessante, mas no que diz respeito à prática os casos deste tipo são raros, sendo muito difícil reunir um número suficientemente grande de resultados que permitam tirar conclusões válidas.

o principal estudo deste tipo foi efectuado por Sir Cyril Burt, professor de Psicologia inglês, auxiliado por duas das suas colaboradoras, sobre 53 pares de gémeos. Convencido da hereditariedade da inteligência, Burt produziu resultados que demonstravam perfeitamente a, validade da sua teoria e que foram considerados fundamentais durante muito tempo e citados em numerosas obras. Após a sua morte, os dados foram reexaminados e as incoerências começaram a surgir. Nunca ninguém encontrou as suas colaboradoras. Burt tinha «fabricado» os seus dados. Conseguiu fazer uma fraude, um trabalho científico com notoriedade internacional, felizmente desconsiderado hoje em dia.

De qualquer maneira, o estudo dos gémeos tem grande interesse científico e poderá dar uma contribuição importante. Outras investigações têm considerado não só os gémeos verdadeiros que vivem separados, mas também os que vivem juntos e os falsos gémeos, iguais aos outros irmãos do ponto de vista genético, comparando os graus de parecença no interior destes diferentes pares. Supondo que o meio tem o mesmo papel para as três situações, e que os factores genéticos contribuem para as capacidades intelectuais, então a semelhança deve ser mais forte entre os gémeos verdadeiros, separados ou não, que entre os falsos. Se a hereditariedade não intervém, as semelhanças encontradas para todos os pares devem ser as mesmas. Os resultados, apoiados em 4 mil pares de gémeos referem que os gémeos verdadeiros, separados ou não, parecem-se mais que os falsos que, por sua vez, são mais parecidos aos irmãos normais. Podemos daqui concluir que é impossível negar o papel do património genético. Mas estes factores não podem, por si sós, explicar a semelhança entre indivíduos aparentados. É preciso fazer intervir os factores do meio. Como vemos, não é possível tirar conclusões decisivas.

Os trabalhos sobre crianças adoptadas são também numerosos e talvez mais aprofundados. As crianças adoptadas constituem uma experiência natural, já que o meio biológico, os pais genitores, é distinto do meio sociocultural, família adoptiva. E encontramo-nos perante diferentes possibilidades de investigação. Entre outras, podemos comparar o QI de crianças adoptadas com o dos seus pais biológicos ou o dos pais adoptivos e comparar o sucesso escolar destas mesmas crianças com o das nascidas e criadas na famílias adoptivas. É preciso termos em conta que, como no caso dos gémeos, as preocupações metodológicas a tomar são numerosas como, por exemplo, as crianças devem ter sido abandonadas muito cedo e/ou adoptadas também muito cedo, é necessário estar seguro que as crianças foram colocadas ao acaso nas famílias de adopção.

As investigações apontam para a ausência de uma origem genética nas diferenças intelectuais entre grupos sociais. Mas não podemos generalizar para o nível individual. Alguns investigadores afirmam que a inteligência é hereditária no interior de uma população e concluem que as diferenças entre populações são também genéticas. A existência de genes que provocam deficiências intelectuais conduz à ideia de que os genes têm um efeito positivo sobre a inteligência? Ainda ninguém conseguiu provar nada disto. Então temos que ser reservados quanto às interpretações que fazemos e às deduções que tiramos deste tipo de estudos.

A polémica não está acabada, longe disso. Temos ainda muito poucas respostas. A inteligência é um conceito com sentidos diversos que variam com a cultura, os modelos de sociedade, os indivíduos. Os factos científicos podem ser utilizados em interpretações ideológicas e com implicações políticas, feitas, em geral, pelos mais convencidos de que existe uma hierarquia natural entre os seres humanos.

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