segunda-feira, 29 de março de 2010

*A Memória

A articulação aprendizagem-memória
(Um ponto prévio)


Aprendizagem e memória são processos indissociáveis na medida em que uma conduta só se considera aprendida se for retida, isto é, memorizada pelo sujeito; e só se pode reter o que foi adquirido ou aprendido. O próprio conceito de aprendizagem como mudança sistemática da conduta supõe implicitamente a memória como condição de conservação da resposta aprendida.


A memória e a aprendizagem são aspectos complementares do mesmo processo geral. Se não houvesse retenção dos resultados da prática anterior, cada tentativa de aprendizagem resultaria no mesmo comportamento da primeira. Não haveria aprendizagem sem os efeitos de "conservação" da experiência prévia. A aprendizagem diz respeito a modificações, presumivelmente nervosas, resultantes da experiência; memória é o termo que se aplica à persistência dessas modificações (...)
A lembrança de uma experiência pode ser insignificante, parcial ou completa. As variáveis que influem na retenção são, essencialmente, as mesmas que afectam a aquisição, de sorte que as coisas que facilitam a aprendizagem, também facilitam a retenção.
C. Telford, e J. Sawrey, Psychologie


Já todos dissemos, certamente, acerca de alguém: "É uma pessoa muito experiente!" Ter experiência é sinónimo de já ter aprendido muito e, portanto, estar apetrechado com saberes que permitem enfrentar com eficácia as novas situações que surgem. Sem memória, as aprendizagens teriam de estar constantemente a ser adquiridas, o que equivaleria a dizer que estávamos sempre no ponto zero. Não ter memória seria o mesmo que não ter aprendido nada.

A memória é o sustentáculo da vida humana, dado que o homem é um ser que evolui em função das constantes aprendizagens que faz. É a memória que faz com que as aprendizagens, ao serem conservadas, se constituam como plataformas de novas aprendizagens qualitativamente superiores.

Procure imaginar por um momento que não tem memória. As nossas lembranças operam com tanta ligeireza e automatismo que poucas pessoas ( ... ) tomam consciência da sua presença invasiva. No entanto, perceber, estar consciente, aprender, falar e resolver problemas, tudo isso requer aptidão para armazenar informações. A percepção e a consciência muitas vezes dependem de comparações entre o presente e o passado.

A aprendizagem exige a retenção de hábitos ou de novas informações. Para falar é preciso lembrar-se das palavras e de pelo menos algumas regras gramaticais. A solução de problemas baseia-se na retenção de cadeias de ideias. Mesmo as actividades geralmente consideradas não intelectuais, tais como mexericar ou lavar pratos, dependem da capacidade de recordar. De facto, quase tudo o que se faz depende da memória.


A memória é, portanto, o suporte essencial de todos os processos de aprendizagem e permite ao organismo manter continuadamente um sistema de referência da experiência vivida. E, no caso do homem, é o factor básico da capacidade de reconhecer a sua identidade como pessoa.



INTRODUÇÃO

A memória é o processo cognitivo que nos permite ter acesso ao passado, estruturar o presente e projectarmo-nos no futuro


Algumas questões comuns sobre a memória

Porque é que um facto desagradável, que gostaríamos de não recordar, permanece na nossa mente, como se tivesse sucedido ontem? Porque é que certos acontecimentos se apresentam de forma tão nítida, enquanto outros permanecem escondidos numa mistura de passado e de imaginário? Até que ponto podemos confiar nas recordações de uma criança? Até que ponto os testemunhos de quem depõe em tribunal são fiáveis? Com a idade esquecemos mais facilmente, ou isto não passa de um preconceito? Que relações se estabelecem entre a memória individual e a memória colectiva?


Quando desconfio da minha memória, escreve Freud num artigo que data de 1925, posso recorrer à caneta e ao papel. O papel converte-se, então, numa parte externa da minha memória e retém algo que, de contrário, estaria invisível dentro de mim. Quando escrevo numa folha de papel, estou certo de que disponho de uma recordação permanente resguardada das deformações que talvez a minha memória tenha sofrido. O inconveniente é que não posso desfazer-me dessa recordação quando já não preciso dela, e a folha de papel está cheia. Já não há espaço para escrever. Estes inconvenientes não existem se utilizo outro método: uma ardósia e giz. Uma ardósia pode usar-se sempre de novo e portanto tem uma capacidade ilimitada. Mas o inconveniente de uma ardósia é que, para escrever uma nota nova, é preciso apagar a anterior. Então, parece que uma capacidade ilimitada e a presença de traços indeléveis se excluem mutuamente no caso dos recursos que utilizamos para substituir a nossa memória. As folhas de papel e as ardósias carecem, por conseguinte, dessa característica que faz com que a memória humana seja tão incrivelmente eficaz, segundo Freud, porque o nosso aparelho psíquico consegue fazer, precisamente, o que não podem fazer estes outros instrumentos; tem uma capacidade ilimitada para assimilar novas percepções e deixa traços duradouros, ainda que não inalteráveis, na memória.

D. Draaisma, Las metáforas de la memória. Una historia de la mente., 1998, p.27




A memória tem tido uma história peculiar na psicologia. Há um século atrás para poder ser estudada cientificamente, Ebbinghauss partiu-a em bocados tão pequeninos, que se tornou quase invisível. Tão invisível que os comportamentalistas fizeram-na desaparecer a favor da aprendizagem. Quase a meio do século Bartlett, num estudo que hoje em dia seria considerado ecológico, clamava no deserto que a memória era um processo activo, e os seus "esquemas cognitivos” foram considerados fantasmas. Com a chegada do computador, parecia que a hora da memória tinha chegado. Os diferentes armazéns da memória invadiam as investigações e as publicações. Mas o que é que explicava esta concepção de memória? Muito pouco. Não permitia entender os seus fundamentos biológicos nem as suas patologias. Também não se podia estudar o desenvolvimento da memória porque ao computador dá-se tudo feito, não tem evolução nem crescimento. A emoção, importante na memória humana, foi ignorada, tal como as influências sociais e culturais. A memória funcionava da mesma maneira em qualquer contexto.

Por fim, parece que o estudo da memória encontrou um caminho no qual abandonaram as metodologias reducionistas e se puseram de lado as analogias inadequadas. A memória humana é agora olhada em toda a sua complexidade

Uma memória que tem uma base cerebral, predisposições inatas, que se desenvolve, que aprende, que se engana e se emociona, se perturba, se atrofia, que recupera e que envelhece. Numa palavra, que vive.




Características da memória

Todos os sistemas cognitivos, naturais ou artificiais, são sistemas dotados de memória. A memória foi considerada durante muito tempo como um processo muito simples da cognição, especializado na retenção do passado. Hoje sabemos que isto não é assim. A memória é, provavelmente, a própria forma da cognição. Aliás, ela é ainda mais primária do que a cognição porque um sistema cognitivo só pode emergir de um sistema com memória. Tendo em conta a investigação recente, não é por acaso que a memória será o primeiro processo cognitivo a ser compreendido num contínuo que vai das moléculas à mente.

Os processos mnésicos permitem o acesso aos acontecimentos do passado, mas as memórias, transitórias ou permanentes, constroem também o nosso presente psicológico e o que será codificado, representado e armazenado no futuro. Podemos dizer que memória não é somente o passado, é também o presente e o futuro. A memória é o processo cognitivo que nos permite codificar a informação resultante da experiência, armazená-la num formato apropriado, recuperá-la e utilizá-la em operações ou acções sobre o mundo.

A memória implica criar representações. Já há muito tempo, mais precisamente no ano 400, Santo Agostinho referia-se à memória como uma imagem ou representação. Dizia ele que seria impossível falar das montanhas, dos rios e dos astros, que ele tinha contemplado, ou do oceano, de que tinha ouvido falar, se interiormente não os «visse». A memória era um recinto interno imaginário que se convertia num reflexo do mundo exterior, do seu mundo exterior. Como uma cópia do exterior no interior.

Hoje a ciência demonstrou que é impossível perceber o comportamento sem ter em conta as representações que construímos do mundo. As representações, sejam ícones, retratos, mapas ou ficheiros de dados tomam o lugar de objectos existentes na realidade. Estas entidades têm uma função de substituição e estão intimamente ligadas à memória porque são o local onde a experiência é conservada.

A memória é um conjunto de representações. As representações são construídas a partir da informação categorizada e arrumada em esquemas cognitivos. Uma representação pode fazer uso de tipos diferentes de esquemas cognitivos.

As representações não são cópias da realidade exterior como pensava Santo Agostinho. Ao criarmos imagens interiores dos objectos exteriores, elas são tratadas e modificadas pelos processos cognitivos. A capacidade de fazer face a questões novas, que implica o uso de informação que está na memória, depende da capacidade que temos de criar e de transformar representações. As representações não podem ser comparadas a fotografias ou à transcrição mecânica das experiências no tecido nervoso porque implicam um trabalho de atenção, de selecção e de codificação que tem por base significados e conhecimentos anteriores. Uma experiência qualquer, por exemplo, uma notícia de jornal, uma história, um livro, deixa uma marca na medida em que é catalogada a partir de experiências semelhantes, dos nossos interesses, de expectativas ou de emoções, ou seja, de sistemas de referência anteriores. Nenhuma recordação é totalmente neutra ou independente de outras recordações.

As representações permitem substituir uma informação externa, ausente, por uma informação interna, presente e conservada no seu interior. A partir daqui podemos substituir as acções concretas sobre o real por acções simbólicas, puramente internas, o que se traduz num aumento muito importante das nossas capacidades de adaptação ao meio.

A memória é um processo activo. Para nossa surpresa, ao revermos um filme que tínhamos visto há muito tempo, constatamos que muitos dos pormenores nos parecem diferentes daquilo que nos lembrávamos, embora antes tivéssemos a certeza absoluta do que tínhamos visto. Bartlett, em 1932, avançou com a ideia de que a memória é um processo activo e não uma recordação factual do que aconteceu. Mais do que gravar a informação, organizamos as nossas memórias de forma a que elas se encaixem nas nossas expectativas e no nosso conhecimento. O que lembramos pode não ser exactamente o que aconteceu. Bartlett estudou este assunto através da reprodução de histórias. As pessoas liam ou ouviam uma história e depois contavam-na. Verificou que as histórias reproduzidas apresentavam imprecisões.

Estas imprecisões eram típicas e sistemáticas:

Mudanças de significado – As pessoas tendiam a centrar-se num aspecto da história, tornando essa parte a mais importante, mesmo que isso não fosse assim no original

Distorções afectivas – Os sentimentos e as emoções das pessoas face à história influenciavam aquilo de que se lembravam

Desvios – O significado da história mudava regularmente de uma reprodução para outra

Encurtamento – A história tornava-se cada vez mais pequena; os detalhes eram omitidos; os detalhes mais facilmente omitidos eram os que não interessavam para a compreensão da história

Coerência – As mudanças eram feitas de modo a que a história tivesse mais sentido para a pessoa; podia incluir a introdução de novo material ou mudanças na sequência de acontecimentos

Convencionalidade – Temas ou clichés bem conhecidos substituíam a ideia original de modo a que a história se tornasse mais convencional, indo ao encontro do contexto cultural e social da pessoa

Perda de nomes e de números – Os números e os nomes próprios tendiam a ser perdidos ou mudados para outros mais familiares


No quotidiano, um exemplo comum desta característica da memória é a transmissão de boatos ou de rumores. As pessoas ouvem histórias ou bocadinhos de notícias e passam essa informação a outros. A natureza activa dos processos de memória implica que uma mensagem, especialmente se é ambígua, pode ser bastante distorcida. Se as pessoas não têm muita informação vão preencher o que falta de forma a construírem uma história consistente. Quer dizer que tendemos a adaptar a informação de modo a que ela se encaixe num esquema mental, esquecendo os detalhes que nele não se encaixam. Por exemplo, se não gostamos de alguém, dificilmente admitimos que há alguma coisa boa nessa pessoa, mesmo que tenhamos ouvido dizer que ela fez alguma coisa de bom. Os esquemas cognitivos, como vimos atrás, são grelhas mentais que utilizamos para dar sentido à vida de todos os dias. Isto não significa que somos incapazes de nos lembrar de informação que não esperamos ou que não desejamos, mas lembramo-nos mais facilmente de informação que faz sentido para nós, que se encaixa nos nossos esquemas. Este processo é muitas vezes inconsciente.

A ideia da memória baseada em esquemas e representações é concordante com os estudos da percepção que nos mostram que os esquemas antecipatórios ou preexistentes dirigem a busca perceptiva. Os esquemas cognitivos dirigem a nossa memória, preparando-nos para lembrar melhor algumas coisas e não outras, embora a informação que estamos a receber influencie a forma como o esquema se vai modificando e desenvolvendo. Por isso é um processo activo.

A confabulação é outro dos processos pelos quais adaptamos as memórias aos nossos esquemas ou expectativas. Loftus, em 1975, fez um estudo onde mostrava aos participantes um filme de um acidente de tráfego. Dividiu as pessoas em dois grupos. Ao primeiro perguntava: «A que velocidade iam os carros quando chocaram?». Ao segundo: «A que velocidade iam os carros quando se esmagaram?».
Uma semana mais tarde, perguntou se tinha havido algum vidro partido, como resultado do acidente. Embora não tenha havido nenhum, o grupo 2 lembrava-se claramente de vidros partidos. Quer isto dizer que o modo como a pergunta foi feita influenciou as respostas. Os participantes produziram memórias activas consonantes com as suas expectativas, lembrando-se do acidente como tendo sido mais sério do que realmente foi.

Muitas vezes as pessoas tendem a insistir na veracidade das suas memórias, mesmo quando lhes é mostrado que não estão correctas. Uma vez produzida uma memória, que vai ao encontro das nossas ideias, tendemos a mantê-Ia. Isto é um problema para a lei, especialmente quando se trata de testemunhas presenciais de acidentes ou de outros acontecimentos dramáticos. Interpretamos o que vemos em função do que esperamos que aconteça e as nossas memórias reflectem isso. Na polícia, costuma dizer-se que, se houver vinte testemunhas de um acidente, há realmente vinte acidentes diferentes.

Perceber o que aconteceu envolve um processo muito cuidadoso de comparação e de análise dos diferentes depoimentos. As pessoas convencem-se de que o que têm na memória foi o que se passou. A confabulação não tem nada a ver com a mentira, porque a pessoa está honestamente convencida de que o que está a dizer é verdade. Pode ser capaz de visualizar a cena e de se lembrar de pequenos pormenores da mesma maneira que os participantes da investigação anterior se lembravam de vidros partidos. Os pequenos sinais dados pelo interrogador, muitas vezes subtis e inconscientes, juntamente com a imaginação e com o desejo de querer ajudar, podem alterar a memória de uma situação.

A memória tem um valor adaptativo.
Para que serve a memória? No reino animal encontramos uma vasta gama de capacidades de memória. Os protozoários têm programas de comportamento tão organizados que poderíamos pensar que possuem memória. E realmente têm memória, mas é basicamente uma memória genética. São programas predeterminados de comportamento, que estão contidos nos genes e que permitem a relação do organismo com o ambiente. Isto significa que estes seres vivos têm uma capacidade de mudança muito pequena para responderem adaptativamente ao meio, embora a memória genética seja complementada com aprendizagens muito rudimentares.

A espécie humana está menos dependente da memória genética e, por isso, está mais apta a aprender. Temos capacidade para adquirir e armazenar a experiência, utilizá-Ia para alterar o comportamento e responder adaptativamente quando as exigências do ambiente o requeiram. O ser humano é um organismo com uma imensa capacidade de adaptação e, portanto, está muito dependente da aprendizagem e de uma memória diferente da memória genética.

Nas primeiras semanas ou meses de vida do bebé desaparecem os reflexos primários ou arcaicos. A espécie tem necessidade de se libertar de certos vestígios da memória genética, ficando disponível para a aprendizagem. Quando nasce, o bebé possui apenas informação rudimentar. Este facto pode ser considerado um sucesso filogenético porque, por um lado, suprime a rigidez característica dos programas de comportamento inatos e, por outro, permite-nos alcançar níveis superiores de flexibilidade adaptativa, como seres inacabados.

A memória permite-nos ter o conhecimento necessário para organizarmos comportamentos adaptativos independentemente da complexidade da situação.

Se pensarmos que qualquer comportamento implica vários processos mentais, definição de metas, planos para as alcançar, avaliação dos recursos disponíveis e dos custos/benefícios, processos de avaliação, de raciocínio e de solução de problemas, utilizando o conhecimento armazenado na memória, fica patente a necessidade desta e o papel crucial que desempenha na global idade e na complexidade da mente.

O ser humano necessita de memória, não para armazenar e reter informação "porque sim", mas porque a imensa diversidade e complexidade de situações com que se defronta exige que essa base de conhecimento recuperável esteja a aumentar e a reorganizar-se continuamente.

Muitos factores influenciam a memória.

Já vimos, por exemplo, como as nossas expectativas influenciam aquilo que retemos.

Muitos factores estão relacionados com a memória como os fisiológicos, os emocionais ou os culturais.

Se centrarmos isto em nós próprios e na nossa vida do quotidiano, verificamos que ao nível dos factores fisiológicos o bem-estar cerebral depende, em grande parte, da oxigenação dos tecidos nervosos e que o exercício físico, a qualidade da alimentação e do sono influenciam o estado da nossa memória. Ao nível dos factores emocionais, pode colocar-se, por exemplo, a questão da concentração. Estados emocionais perturbadores, situações de pressão e de stress dificultam a concentração criando «ruído mental" e impedindo-nos de prestar atenção.
Ao nível cultural sabemos que é a partir do contexto em que vivemos e das nossas experiências como membros de uma cultura específica, que construímos representações do mundo que influenciam o que memorizamos e como memorizamos. Por exemplo, as sociedades sem escrita confiam unicamente nas suas memórias para se lembrarem de informações do passado, possuindo tradições orais muito ricas e processos próprios de as memorizarem.


Existe um conjunto de estratégias que facilitam a memorização como, por exemplo, a fixação de conceitos-chave através de esquemas, e daí a importância dos mapas conceptuais. A visualização de conceitos concretos ou abstractos através de imagens facilita a evocação da informação. É o caso, por exemplo, de pedir às crianças que desenhem os países que estão a aprender em Geografia. Não interessa a qualidade do desenho mas o mapa mental que estão a construir sobre a sua localização no espaço.

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