Ainda não sabemos exactamente quantos sistemas de memória existem e como devem ser designados. No entanto, algumas ideias gerais parecem estar assentes. Sabemos que a memória depende de alterações nos neurónios e nas suas ligações. Sabemos, também, que os sistemas de memória já identificados dependem de estruturas específicas do cérebro, de mecanismos próprios de codificação, de estratégias e de regras internas.
Um número de telefone pode apagar-se facilmente da nossa mente, mas uma recordação da infância pode manter-se para sempre. Assim se manifestam dois grandes tipos de memória, a breve, designada por memória de curto prazo, e a duradoura, designada por memória de longo prazo.
A memória de curto prazo envolve os processos que retêm a informação temporariamente até ser esquecida ou guardada num armazém de longo prazo tornando-se potencialmente permanente.
Apresenta duas componentes, a memória imediata e a de trabalho. A memória imediata retém a informação quando é recebida, tornando-se o centro da nossa atenção em determinado momento. Ocupa o pensamento durante mais ou menos 30 segundos e tem capacidade para mais ou menos sete ou oito itens. Mas este tempo pode alargar-se se o conteúdo for repetido. Lembremo-nos de quando éramos pequenos e a nossa mãe nos pedia que fôssemos comprar alguma coisa. Íamos pela rua fora a repetir mentalmente ou a cantarolar «cinco pães, um pacote de leite, um quilo de limões e o jornal». Esta é a memória de trabalho.
A memória de trabalho é uma espécie de lista de compras que é esquecida mal acabamos de a utilizar. Da mesma forma, um número de telefone é passível de ser mantido na memória durante um pequeno período de tempo, utilizando a mesma estratégia. E para isso até o decompomos em conjunto de dois ou três elementos. Em vez de repetirmos tudo de seguida 214295637, utilizamos três grupos de algarismos 214 295 637. Agora imagine-se alguém que tinha no seu atendedor de chamadas a seguinte mensagem: «Acabou de ligar para o duzentos e vinte e oito milhões, cento e cinquenta e três mil, novecentos e quarenta e dois. Deixe a sua mensagem após o sinal ou, no caso de ter urgência, ligue para o novecentos e trinta e três milhões, setecentos e vinte e um mil, e sessenta». Seria extremamente difícil não só compreender o número como retê-lo.
A memória imediata e de trabalho operam em paralelo e são os dois componentes principais da memória de curto prazo. Mas existem outros que se manifestam posteriormente até ao estabelecimento de uma memória estável. Permitem manter a informação de minutos a uma hora ou mesmo mais, bem para além do momento em que ela está a ser activamente retida. Por exemplo, "amanhã não me posso esquecer de levar o livro para emprestar à Ana". Após a tarefa cumprida, no dia seguinte, a memória desaparece.
A memória de longo prazo envolve os processos que retêm recordações como episódios da nossa vida, rostos de pessoas conhecidas ou conceitos.
Tanto a memória de curto prazo como a de longo prazo provocam alterações na estrutura e nas ligações das células nervosas. As mesmas ligações entre neurónios podem participar nos dois tipos de armazenamento. Existe um mecanismo semelhante a um "transformador molecular" que converte a memória de curto prazo em memória de longo prazo.
Na memória de longo prazo podemos identificar dois subsistemas diferentes, a memória declarativa e a memória não declarativa. Elas dependem de sistemas cerebrais diferentes.
A memória não declarativa, também chamada implícita ou "sem registo», é uma memória automática e reflexa, que guarda as Informações de "saber como fazer as coisas". As experiências são convertidas em processos que alteram a natureza do organismo e as suas competências.
Não é uma recordação, mas uma alteração de comportamento, tal como esquiar, ler um mapa ou andar de bicicleta. É inconsciente embora possa ser acompanhada de algumas recordações, «espera lá, como é que costumo fazer isto?». Podemos aprender a fazer qualquer coisa e a seguir lembrarmo-nos de alguns elementos da mesma como, por exemplo, imaginarmo-nos a executá-Ia. No entanto, a capacidade de desempenhar a competência parece ser independente de recordações conscientes.
A memória não declarativa envolve processos de aprendizagem simples e reflexos como hábitos e condicionamentos. Por exemplo, quando aprendemos a andar de bicicleta é provável prestarmos muita atenção às manobras da roda da frente, à posição do guiador e ao acto de pedalar, primeiro com o pé esquerdo e depois com o direito. Mas quando adquirimos prática, o acto de andar de bicicleta é guardado como memória não declarativa, conduzimos e pedalamos automaticamente. Não é necessário evocar conscientemente que é preciso pressionar os pedais com o pé direito e depois com o esquerdo. Estas memórias mantêm-se intactas durante anos ou décadas.
A memória não declarativa permite-nos conservar procedimentos para actuarmos no mundo. À medida que vamos crescendo, aprendemos a dizer «por favor» e «obrigado», a lavar os dentes antes de irmos para a cama e a executar uma série de outros comportamentos que resultam da prática. Adquirimos muitos desses hábitos nos primeiros anos de vida sem qualquer esforço óbvio e quase sem repararmos que a aprendizagem está a decorrer. Por exemplo, quando aprendemos a ler, passamos com hesitação de palavra para palavra mas, depois de alguma prática, conseguimos ler rapidamente, movimentando os olhos para um ponto diferente quatro vezes por segundo, compreendendo mais de trezentas palavras por minuto.
A memória declarativa, também chamada explícita ou «com registo», é uma memória consciente do passado, um conjunto de Informações sobre pessoas, lugares, situações, acontecimentos ou factos, que guarda informações do «saber que». É a ela que habitualmente nos referimos quando usamos o termo «memória». É uma memória consciente do nome da nossa avó, do primeiro rei de Portugal, dos planetas do sistema solar, da conversa desta manhã.
Lembremo-nos do nome de um dos nossos amigos. Lembremo-nos do rosto dessa pessoa, do som da sua voz e da maneira de falar. Depois, lembremo-nos de um acontecimento particular em que tenha participado, uma conversa importante, uma viagem ou uma festa especial. Estamos a recriar o episódio, na nossa imaginação, deslocando-nos para o contexto, espacial e temporal, em que aconteceu. Parece surpreendente a facilidade com que evocamos a cena e o que se passou. Curiosamente, ao realizarmos um exercício deste tipo não precisamos de treino nem de instruções. Recordar de forma vivida o passado é algo que todos fazemos diariamente, sem grande esforço. A memória declarativa é a memória de todos os conhecimentos que podem ser «declarados» sob a forma de proposições verbais ou de imagens mentais. Ela é imperfeita, passível de inexactidões e de distorções, mas também pode ser fiel, especialmente quando guarda conhecimentos gerais sobre o mundo. Podemos confundir o nome de uma pessoa ou uma data de aniversário, mas não confundimos um elefante com uma baleia.
Muitas actividades requerem os três tipos de memória. Vejamos o jogo do ténis. Conhecer as regras ou quantos sets são precisos para ganhar uma partida envolve a memória semântica. Lembrar o lado que foi o último a servir, requer a memória episódica. Saber lançar a bola ou fazer um serviço envolve a memória não declarativa.
Processos básicos de memória (Momentos essenciais)
• Recepção e codificação da informação
• Armazenamento da informação
• Recuperação da informação
• Esquecimento da informação
O matemático John Griffith estimou que, num tempo médio de vida, uma pessoa armazena o equivalente a quinhentas vezes mais informação do que aquela que se pode encontrar em todos os volumes da Enciclopédia Britânica. John von Newmann, um dos pais dos computadores, calculou que, em média, as recordações memorizadas durante toda a vida humana deveriam atingir 2,8 x 1020 unidades elementares de informação. Correspondentes a vinte e oito milhares de milhão de bits e cerca de trezentos milhões de gigabites. Haverá espaço no nosso cérebro para este incrível volume de recordações? Em termos teóricos, o nosso cérebro não está mal equipado, cem mil milhões de neurónios, cada um dos quais com centenas ou milhares de possíveis contactos nervosos com outros neurónios, constitui uma rede nervosa de notável potência. A capacidade da memória humana depende de operações muito complexas.
A primeira operação de tratamento da informação é a recepção e codificação. À medida que chega, a informação sensorial é codificada de forma a poder ser comunicada ao cérebro.
Podem ser utilizados vários códigos. Por exemplo, pensemos na frase "Hoje está sol". Se codificarmos o som das palavras, tal como foram ditas, estamos a usar um código acústico e a informação é representada na memória como uma sequência de sons. Se codificarmos a imagem das letras, tal como estão organizadas em signos, estamos a usar um código visual e a informação é representada na memória como uma imagem. Finalmente, se codificarmos o facto "estar sol", estamos a usar um código semântico, e a informação é representada na nossa memória pelo seu significado. O tipo de código usado pode influenciar o que é lembrado.
Quando a codificação envolve bastante trabalho, ou seja, quando a informação é processada a um nível profundo, lembramo-nos dela mais facilmente.
Quando estamos a estudar um assunto, quanto mais gostarmos dele, quanto mais necessidade, desejo ou curiosidade tivermos, quanto mais nos implicarmos nessa tarefa, melhor será a sua aprendizagem. Mesmo quando a memória de qualquer facto pareceu não exigir esforço, o processo não é assim automático. Determinadas situações ou factos são recordados porque nos interessam realmente, mesmo sem termos consciência disso. Lembramo-nos porque desencadeamos espontaneamente operações de codificação profundas e elaboradas. Se não estivermos a fazer um esforço deliberado, são os nossos interesses e preferências que direccionam a atenção e influenciam a quantidade e a qualidade da codificação.
O segundo processo é o armazenamento. Trata-se da manutenção da informação ao longo do tempo, muitas vezes durante muito tempo.
Recordar umas férias da infância depende da capacidade de armazenamento da nossa memória. De que forma é que a informação codificada se mantém na memória? Não existe um sítio específico no cérebro onde se arrumam as recordações. No entanto, a informação não está espalhada por todo o lado. Ainda não é possível localizar os pontos onde a representação de um determinado objecto está armazenada. Mas as novas técnicas de recolha de imagens cerebrais têm mostrado que várias regiões cerebrais estão envolvidas no registo de um único acontecimento, e que cada região contribui de forma diferente para o todo. As alterações no cérebro, resultado da codificação e do registo da experiência, produzem traços mnésicos também chamados engramas.
A informação nova vai modificar um conjunto complexo de processos bioquímicos e cada informação, engrama, é representada por uma configuração particular da actividade nervosa. Num primeiro momento, o engrama é dinâmico e produzem-se mudanças nas ligações neuronais. Depois, torna-se estrutural, permanente, e capaz de reproduzir a actividade nervosa necessária à actualização da informação. Por isso, a memória não se estabelece num momento. Pelo contrário, leva um tempo considerável a desenvolver a sua forma permanente. O processo de fixação requer várias etapas e até estar completo, a memória mantém-se vulnerável a perturbações. Grande parte deste processo completa-se durante as primeiras horas de aprendizagem. Mas a estabilização estende-se muito para além deste ponto e envolve alterações contínuas na organização da memória de longo prazo.
O terceiro processo é a recuperação. Ocorre quando localizamos a informação na memória e a trazemos à consciência.
Recuperar informações armazenadas, como um endereço ou um número de telefone, é normalmente tão rápido e fácil que parece automático. Só quando tentamos recordar outros tipos de informação, tal como a resposta a uma pergunta que conhecemos mas que não conseguimos evocar, tomamos consciência do processo de busca. O processo de recuperação inclui a evocação e o reconhecimento. Quando não somos capazes de nos lembrar do nome de alguém, mas sabemos que conhecemos aquela cara, está em jogo este processo. Analisamos o estímulo, a cara, e procuramos na memória o nome que lhe está associado. Primeiro temos que saber se conhecemos a cara ou não, reconhecimento, e depois procuramos o tal nome, evocação. Quando estamos a responder a itens de escolha múltipla, estamos perante informação que identificamos e comparamos com a que temos guardada. É uma tarefa de reconhecimento.
A recuperação é ajudada por pistas, as alternativas. Quando estamos a responder a itens de resposta aberta, temos que procurar a informação necessária, a partir de estímulos gerais. É uma tarefa de evocação. Temos de recuperar a informação sem muita ajuda. O reconhecimento tende a ser mais fácil do que a evocação.
E como a nossa memória não é um gravador de som nem de imagem, os erros podem introduzir-se em qualquer momento, durante a codificação, o armazenamento ou a recuperação. Não sabemos ainda se o cérebro tem limites para armazenar informação. Mas sabemos que algumas situações, como a fadiga ou o aborrecimento, podem dificultar todo este processo. A última operação que falta neste esquema é o esquecimento e dele nos ocuparemos a seguir.
Memória e esquecimento
Esquecimento
Florbela Espanca
Esse de quem eu era e era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.
Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei... tacteio sombras... que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!
Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisântemos...
E desse que era eu meu já me não lembro...
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos...!
Texto extraído do livro "Sonetos", Bertrand Brasil - Rio de Janeiro, 2002, pág. 181.
O esquecimento é uma condição da memória
Os mais velhos têm frequentemente a sensação de que a sua memória está a abarrotar de recordações e que às vezes é difícil lembrarem-se daquilo que é útil e deixar de lado aquilo que, pelo contrário, parece "inútil". Mas independentemente da idade, a maior parte das pessoas considera que a sua memória não funciona tal como gostariam.
O esquecimento é normalmente sentido como uma espécie de "patologia" da memória. Porém, todas as pessoas, dia após dia, sabem o seu nome, fazem o jantar, lêem, entram no seu carro e conduzem no meio do trânsito travando, acelerando, accionando as mudanças, sem acusarem qualquer problema de memória.
O esquecimento é a incapacidade, provisória ou definitiva, de aceder conscientemente a uma informação adquirida ou a uma experiência vivida no passado mais imediato ou mais longínquo.
No dia seguinte a vermos um filme conseguimos contar o argumento e a acção de forma detalhada. No entanto, um ano mais tarde, não nos lembramos senão de um esboço do filme e talvez de fragmentos de algumas cenas.
À primeira vista, o esquecimento parece ser uma desvantagem. Não seria melhor recordar tudo o que lemos, nunca nos esquecermos de onde deixámos as chaves ou os óculos, guardarmos todas as situações que consideramos importantes? Esta questão não tem ainda uma resposta clara, mas parece que, sem esquecimento, a nossa capacidade de adaptação estaria seriamente ameaçada. O esquecimento é consequência do funcionamento da memória e, longe de ser uma limitação, é uma necessidade. Os sistemas cognitivos artificiais não esquecem nada, o que significa que não são capazes de modificar significativamente a informação em função da sua experiência do mundo. Podemos compreender este facto se analisarmos o que se passa com pessoas que não conseguem esquecer.
Uma pergunta que parece importante é «Esquecemos realmente a informação, ela desaparece do nosso cérebro, ou perdemos a capacidade de nos lembrar dela?»
O esquecimento repressivo (motivação inconsciente)
As amnésias psicopatológicas foram identificadas no fim do século XIX, tendo sido Freud um dos investigadores que se interessaram por este assunto. Elas manifestam--se como um esquecimento defensivo. A pessoa evita a recordação consciente de um acontecimento doloroso do passado, exercendo, inconscientemente, uma repressão sobre memórias penosas. Freud considerava que situações, por exemplo da infância,
que nos tenham perturbado e produzido angústia podem ser «recalcadas», guardadas de forma a dificilmente termos acesso a elas. O esquecimento destas situações seria psicologicamente motivado. Existe um mecanismo de defesa, o recalcamento, que nos protege de recordar factos que podem ser emocionalmente muito perturbadores. Estas memórias seriam guardadas no inconsciente por serem demasiado ameaçadoras se lembradas.
O esquecimento provocado
Este tipo de esquecimento pode ser consequência da ingestão de medicação, de drogas ou de álcool. Uma das personagens de Shakespeare, Lady Macbeth, que precisa de agir em segredo, decide recorrer às bem conhecidas propriedades do álcool, e afirma: «De tal forma hei-de embrutecer os camareiros no vinho, que neles, a memória guardiã do cérebro, será fumo, e a sede da razão, um simples alambique». O álcool, como é sabido, não reduz apenas o tempo de reacção, o sentido crítico, a ansiedade, mas age também sobre a memória. E Shakespeare que, ao que parece, se embriagava frequentemente, observa que o vinho pode alterar a memória por um breve período de tempo. Uma ingestão continuada de álcool em grandes quantidades tem consequências bem conhecidas de perda de concentração, problemas de equilíbrio e deficiente sentido de coordenação. Começa por destruir células do fígado e de partes do cérebro e pode conduzir a uma forma de amnésia grave e irreversível, conhecida como Síndrome de Korsakoff, devida à falta de tiamina, uma vitamina do complexo B, que no alcoólico não é suficientemente absorvida.
Depressão
Alzheimer
Intoxicações
AVC
O efeito de drogas que criam dependência é complexo e, em geral, prejudicial para a memória. Existem fármacos que penetram nas células do cérebro para tratar várias doenças como a epilepsia, a doença de Parkinson ou estados depressivos. Tomados nas doses recomendadas, não afectam a memória de modo grave. A excepção são os chamados «tranquilizantes», que podem provocar esquecimento ou mesmo amnésia quando tomados sem vigilância médica ou em doses excessivas. Toda a medicação eficaz tem inevitavelmente efeitos colaterais. As vantagens têm de ser confrontadas com os riscos e isso só o médico pode avaliar.
O esquecimento provocado também pode ser consequência de doenças e lesões cerebrais. Traumatismos, doenças do foro neurológico, acidentes vasculares cerebrais, tumores ou intervenções cirúrgicas, podem produzir lesões directas no suporte material da memória, quer dizer, no cérebro. Por exemplo, a doença de Alzheimer é uma degradação mental progressiva, que ocorre normalmente em pessoas de idade avançada. Os primeiros sintomas são distúrbios da memória que se tornam progressivamente mais graves até à incapacidade de se reconhecer a si próprio. Nestes doentes, a memória autobiográfica parece ser a mais afectada. Os estados de stress e de depressão, ou os choques emocionais fortes também podem causar amnésias.
O esquecimento regressivo
Com a idade, muitas pessoas podem manifestar dificuldades de memória quer ao nível de aprendizagens novas, que na evocação de nomes de pessoas conhecidas ou de acontecimentos recentes. Estas perturbações são muito diferentes das referidas anteriormente, mesmo se resultarem da degenerescência progressiva dos tecidos celulares cerebrais devida à idade. No entanto, com o aumento da esperança de vida, os progressos da medicina, a vontade das pessoas mais velhas de continuarem a trabalhar e a assumir responsabilidades sociais, os efeitos negativos da senescência são diminuídos. As investigações mostram que a capacidade da memória imediata muda relativamente pouco com a idade, mas as tarefas de atenção partilhada ou a memória de trabalho são mais afectadas. É importante salientar que isto depende da ocupação da pessoa e das capacidades cognitivas que continua ou não a exercer.
O esquecimento vulgar (interferência de novas aprendizagens)
• Inibição proactiva – Deterioração dos conteúdos mnésicos provocada pela interferência de recordações passadas.
• Inibição rectroactiva – Deterioração dos conteúdos mnésicos provocada pela interferência de novas informações.
Pode acontecer que a memória esteja lá e nós não a consigamos evocar por falta de pistas. Mas também pode acontecer que os traços mnésicos não passem para a memória de longo prazo pela capacidade limitada desta memória ou porque não foram transferidos. O carácter sucessivo de actividades mais ou menos similares efectuadas pela pessoa pode ser responsável pelo esquecimento. Mas, hoje em dia, aquilo que a investigação demonstra como sendo mais provável é que, como as experiências novas implicam sempre a reorganização das representações da memória, ou seja, dos circuitos da informação nas redes de neurónios, os nossos registos da experiência vão-se alterando, enfraquecendo e modificando, produzindo-se neste processo o esquecimento. As memórias não declarativas tendem a ser mais estáveis do que as declarativas.
Memória, memórias
A memória permite-nos saber quem somos
Somos quem somos porque conseguimos lembrar-nos daquilo em que pensamos. Cada pensamento que temos, cada palavra que dizemos, cada acção que levamos a cabo, na verdade, o sentido de nós mesmos e o sentido de ligação com outros, deve-se à nossa memória, à capacidade de o nosso cérebro registar e armazenar as nossas experiências. A memória é a cola que aglutina a nossa vida mental, a base que sustenta a nossa história pessoal e que possibilita o crescimento e a mudança ao longo da vida. Quando se perde a memória perde-se a capacidade de recriar o nosso passado e, em consequência, perde-se a nossa ligação connosco próprios e com os outros.
Adaptado de L. Squire e E. Kandel, Memória. Da mente às moléculas, 2002
A identidade pessoal
Já sabemos que à medida que vamos adquirindo informação o nosso cérebro se modifica. Uma vez que todos somos educados em ambientes de certo modo diferentes e temos experiências também diferentes, a arquitectura do cérebro de cada um de nós é alterada de forma única. Mesmo os gémeos idênticos, que partilham os mesmos genes, não têm cérebros iguais, pois também eles têm experiências de vida algo diferentes. É evidente que cada um de nós tem um conjunto de estruturas cerebrais e um padrão comum de ligações entre os neurónios baseados no esquema da nossa espécie. Este esquema básico do cérebro humano é igual para todos os indivíduos. Mas os pormenores do esquema variam de pessoa para pessoa. Por isso, cada um de nós é único, como única é a experiência de vida registada na memória.
A maior parte daquilo que sabemos sobre o mundo não existe na nossa mente à nascença, sendo adquirido através da experiência e guardado na memória. Somos quem somos, em grande parte, devido ao que aprendemos e lembramos. Quando recordamos, utilizamos uma representação de nós próprios para nós próprios e para aqueles que nos rodeiam.
Somos a forma como nos representamos nas nossas memórias, a forma como nos definimos como pessoas e como membros de grupos através das nossas memórias, a forma como ordenamos e estruturamos as ideias nas nossas memórias e a forma como transmitimos essas memórias a outros. Somos aquilo de que nos lembramos. A perda da memória conduz à perda do sentimento de si, à perda da nossa história de vida e à perda de vínculos com outros seres humanos.
Assim, a memória permite ordenar e dar sentido às recordações significativas de uma vida. A memória organiza o processo contínuo de construção da nossa identidade, através do qual nos tornámos únicos, do ponto de vista biológico e cultural. O nosso processo de construção não tem fim. É sempre um processo de reconstrução.
Quando somos crianças, esperamos que os pais e os avós nos falem de como éramos em bebés, nos contem histórias acerca de nós, nos digam quem somos. As histórias contadas às crianças contribuem para lhes dizer quem são elas e quem são os outros, o que é o mundo, de onde vem e para onde poderá ir. A criança, quando pede ao avô para lhe contar uma história, procura não só a dimensão fantástica que o conto encerra, como também a sua própria identidade.
Fotografar as crianças é fazer-se historiador da sua infância e preparar-lhes um legado de imagens e de memórias do que foram. O álbum de retratos de uma família exprime uma recordação social. As imagens do passado, dispostas por ordem cronológica, evocam os acontecimentos importantes. São também factores de relação porque vão buscar ao passado a confirmação da sua unidade presente. É por isso que não há nada que estabeleça mais a confiança do que um álbum de família. Todas as aventuras singulares da recordação individual se esbatem e o passado comum emerge. A memória é um mosaico em que se alternam imagens e interpretações da realidade, factos e opiniões, significados e valores, sentido do passado e antecipação do futuro. Nesta perspectiva, a memória dos mais velhos serve de ponte entre o passado e o futuro, assegura a continuidade histórica e, não menos importante, leva-nos a reflectir acerca do significado individual e colectivo das recordações.
A memória social
A capacidade de evocação e de reconstrução de episódios do passado é importante não apenas para cada um de nós como para a colectividade. Histórias e memórias individuais e colectivas estão intimamente relacionadas.
Por isso, a memória não é apenas um registo da experiência pessoal. Os seres humanos têm capacidade para comunicar aos outros o que aprenderam. Ao fazê-lo, criam culturas que podem ser transmitidas de geração em geração. A memória é estruturada pela linguagem, pela observação, por ideias assumidas colectivamente e por experiências partilhadas com os outros. Tudo isto constrói a memória social.
A memória social guarda acontecimentos e experiências passadas, reais ou imaginárias. Com efeito, a experiência passada, recordada, e as imagens partilhadas do passado histórico são recordações importantes para a constituição dos grupos sociais no presente.
A memória não se divide em dois compartimentos um pessoal e outro social. Algumas das nossas recordações parecem na verdade ser mais privadas e pessoais do que outras. No entanto, esta distinção entre memória pessoal e memória social é relativa. As nossas recordações estão misturadas e têm ao mesmo tempo um aspecto social e outro pessoal.
A nossa memória estrutura-se em identidades de grupo.
Recordamos a nossa infância como membros da família, o nosso bairro como membros da comunidade local, a nossa vida profissional em função da organização em que estamos inseridos, e assim por diante. Estas recordações são essencialmente memórias de grupo e a memória de uma pessoa só existe na medida em que essa pessoa é um produto único de determinada relação de grupos.
As recordações que partilhamos com outros são aquelas que são relevantes no contexto de um certo grupo social, quer seja estruturado e duradouro (família, por exemplo) ou informal e temporário (um grupo de amigos que frequenta a mesma escola). Os grupos sociais constroem as suas próprias imagens do mundo criando uma versão própria do passado. Na verdade, as nossas recordações pessoais e até a forma como as recordamos são na sua origem, sociais. A memória é um processo complexo que inclui tudo, desde uma sensação mental altamente privada e espontânea, até uma solene cerimónia pública.
A memória colectiva é o que fica da vivência dos grupos, ou o que estes fazem do passado. Nas sociedades sem escrita há especialistas da memória, «homens -memória», narradores e contadores de histórias. Também antigamente se veneravam os velhos porque eles eram guardiães da memória, com prestígio e úteis à comunidade. A memória traduz-se num «comportamento narrativo» com uma função social, porque é uma comunicação ao outro na ausência desse acontecimento. (Sugestão de leitura: “Cão velho entre flores” de Baptista-Bastos)
A memória, paradoxalmente, tem um carácter transitório. Podemos imaginá-Ia como um lugar onde se guardam objectos de valor, adquiridos durante uma vida de árduo trabalho. Mas tratam-se de objectos que não sobrevivem à morte da pessoa e que não podem ser deixados em herança. Para nos defendermos deste carácter transitório inerente à mortalidade da memória, desenvolvemos memórias artificiais. A prótese mais antiga é a escrita, na Antiguidade, sobre tábuas de argila ou de cera e sobre papiro, na Idade Média sobre pergaminho e pele e, mais tarde, sobre papel. Sobre estas superfícies podiam traçar-se desenhos de todo o tipo, caracteres, planos, retratos, mapas. O aparecimento da fotografia, em 1839, proporcionou uma memória artificial que se aperfeiçoou rapidamente e que oferecia a possibilidade de registar imagens em movimento. A conservação do som" um sonho durante séculos, tornou-se realidade graças ao fonógrafo de Edison patenteado em 1877. Hoje em dia, dispomos de numerosas memórias externas para gravar o que registam a vista e o ouvido, cassetes, vídeos, CD, memórias de computador, hologramas. Agora, a imagem e o som podem deslocar-se no tempo, são repetíveis, reproduzíveis, numa escala que parecia impensável há 50 anos.
A amnésia não é só uma perturbação individual. A falta ou perda de memória colectiva dos povos e das nações, voluntária ou involuntária, pode produzir perturbações graves na identidade colectiva. As recordações podem ser manipuladas, consciente ou inconscientemente, pelos interesses, desejos ou censura. Na história da humanidade, a memória colectiva várias vezes foi posta em causa em lutas pelo poder. Apoderar-se da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações dos grupos ou dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória colectiva. Por isso a memória colectiva é também um instrumento e um objectivo de poder. Em determinados momentos, a memória social foi alterada, falsificando-se arquivos, textos de História e até material fotográfico.
Há um slogan que diz «Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o futuro». (Sugestão de leitura: 1984, G. Orwell)
As recordações familiares, as histórias de um determinado lugar, de uma família, de conhecimentos não oficiais, não institucionalizados, representam a consciência colectiva não só de uma pessoa, através da sua experiência pessoal como de grupos inteiros, de famílias, de comunidades. Esta memória pode contrapor-se a um conhecimento privatizado e monopolizado por grupos que desejam defender interesses próprios. A memória procura salvar o passado apenas para dar sentido ao presente e construir o futuro. Por isso, a memória colectiva de servir para libertar e não para escravizar os homens.
segunda-feira, 29 de março de 2010
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